3° Fascículo - Políticas de Renda
Neste fascículo abordaremos as políticas de renda, com destaque para Renda Básica, Programa Bolsa Família e Auxílio Emergencial. Além de caracterizá-las, analisaremos seus impactos, apontaremos as divergências no funcionamento, implementação e qual foi a relação com o crescimento econômico. No cenário atual de pandemia e até em anos anteriores, nos quais o Brasil já vinha enfrentando uma crise, o debate sobre as políticas de renda tem sido muito presente na sociedade. Além disso, esta discussão também passa pelo questionamento de qual deve ser o posicionamento do Estado como um protetor de direitos sociais e garantidor de renda da população.
É possível surgir para alguns o questionamento: o Estado deve garantir uma melhor distribuição de renda para a população? No primeiro fascículo, falamos sobre crescimento econômico, agora entendendo mais sobre este conceito, é importante destacar que há uma relação deste com a distribuição de renda. Alguns economistas afirmam que o aumento da desigualdade social gera instabilidade político-social, que por sua vez, compromete o crescimento econômico. Assim como, quando há uma distribuição de renda mais igualitária, possibilita não só o crescimento econômico, mas também o desenvolvimento econômico e social do país.
Por mais que grande parte da população tenha conhecimento da importância de reduzir as desigualdades econômicas e sociais existentes no Brasil, quando são propostas políticas com este objetivo, são geradas grande discussões e uma série de críticas. Em alguns momentos, as manifestações dessas adversidades ficaram mais evidentes. Isso muito se relaciona com o fato de que há uma pequena parcela da sociedade que consegue obter benefícios, ainda que dentro da estrutura de um país com a renda concentrada e a maioria da população vivendo sob a condição de pobreza.
O índice de Gini é utilizado para medir o grau de concentração de renda de países e aponta a desigualdade entre a renda mais elevada e a mais baixa. O resultado é um número entre zero e um. Quanto mais próximo de zero menos concentrada é a renda do país, ou seja, maior igualdade de renda. Do contrário, quanto mais próximo de um, maior é a desigualdade que existe no país. Em 2020, o Brasil ficou com a posição de nono país mais desigual do mundo, em um ranking de 164 países selecionados, segundo o levantamento feito pelo Banco Mundial.[1]
Existem políticas que quando são realizadas, impactam na questão da renda. Uma delas é a política fiscal, por meio da qual o governo determina a arrecadação de receita, com a tributação, e também a realização de despesas, gastos do governo, com o objetivo de promover o crescimento econômico, mantendo o desemprego baixo e inflação controlada, além de, para quase todas as escolas de pensamento econômico, fornecer bens e serviços públicos e também garantir uma distribuição de renda mais igualitária. Se a política fiscal for expansionista, tem o objetivo de aumentar a renda da população.
As políticas de renda são aquelas que o governo realiza visando a distribuição de renda. É importante destacar que nem todas as políticas de renda são caracterizadas como transferências de renda, ao falarmos sobre cada política iremos abordar e esclarecer com exemplos as diferenças. As transferências de renda, que consistem em benefícios para indivíduos ou famílias, sem nenhum tipo de contrapartida.
Entre o final da década de 1950 e início da década de 1960, chegaram a ser discutidas propostas para uma reforma de base, principalmente no governo do presidente João Goulart, com o objetivo de diminuir a desigualdade social. Faziam parte destas propostas a reforma agrária, fiscal, bancária, etc. No entanto, gerou repercussões e, logo após, deu-se início o golpe militar de 1964 e essas ideias acabaram não se concretizando e, mais do que isso, a concentração de renda e as disparidades sociais aumentaram.
No início dos anos de 1990, após o projeto de lei apresentado por Eduardo Suplicy, na época senador, as discussões sobre política de renda ficaram mais fortes no Brasil. A partir de então algumas foram implementadas, como o Auxílio Gás, Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Bolsa Alimentação, o Bolsa Escola, o Cartão Alimentação do Programa Fome Zero, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, entre outros. Neste fascículo, aprofundaremos três tipos de políticas de renda, das quais duas costumam ser bem conhecidas na realidade brasileira atualmente e uma delas ainda não ocorreu aqui no Brasil, mas em alguns momentos há o retorno a esta discussão.
Renda Básica
A Renda Básica é uma política de renda que consiste no direito de todos os cidadãos, de um determinado estado ou país, ao recebimento de uma renda de forma individual, sem exigir qualquer pré-requisito em relação a situação socioeconômica do indivíduo. É independente de eventualidades, podendo ser oferecido de forma permanente para os residentes, com o intervalo de tempo, determinado pela entidade pagadora, no caso o Estado.
Esta política é pensada como uma tentativa de eliminar a pobreza, caracteriza-se como uma transferência de renda, mas não se trata de uma complementação. De acordo com ideia original, a Renda Básica deveria ser um valor suficiente para sustentar o beneficiário que a recebe, mesmo se esse não tiver outra fonte de renda, no caso proveniente de um emprego. Poderia ser questionado: não seria um estímulo para que as pessoas parassem de trabalhar?
Nos Estados Unidos, mais especificamente no estado do Alasca os residentes permanentes recebem Renda Básica universal. Esta é uma experiência em pequena escala, conhecida como Fundo Permanente do Alasca. Estudos indicam que em nenhum momento o recebimento deste benefício desincentivou as pessoas a trabalharem, mas sim as deixou mais livres para escolherem no que querem trabalhar.
Pode chamar a atenção o fato de que benefício da Renda Básica, por ser universal, recebem tanto as pessoas mais pobres, quanto as mais ricas. A diferença seria que para as pessoas mais ricas não teria muito impacto em relação à renda que já possui. Por outro lado, para as pessoas mais pobres, além de reduzir a situação de pobreza, poderia gerar um aumento na demanda e tornar o efeito multiplicador do gasto do governo muito maior, ou seja, isso impactaria no aumento da renda agregada.
Deve-se ressaltar que a Renda Básica, é diferente da ideia neoclássica de que o governo dá uma renda e deixa de oferecer serviços básicos, como saúde e educação, por exemplo. O recebimento da renda básica não implica na desobrigação do governo de fornecer a prestação de nenhum serviço para a população, isso ocorreria de forma simultânea.
Bolsa Família
O Programa Bolsa Família foi criado em 2003, é regulamentado pela lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. É um programa que oferece uma complementaridade de renda para famílias em situações consideradas como pobreza e extrema pobreza. Uma característica deste programa é o seu forte caráter de proteção social, pois as famílias devem cumprir alguns compromissos que têm como objetivo reforçar o acesso à educação, à saúde e à assistência social. O foco do programa é voltado para o combate a pobreza e redução das desigualdades sociais.
Caracteriza-se como uma transferência de renda com condicionalidades, mas que não exige contrapartidas. Além de que estipula pré-requisitos para o seu recebimento. Um outro ponto que pode ser comentado é que está política pode ser permanente, já que é possível de ser sustentada economicamente ao longo dos anos por não representar um valor tão expressivo e, além disso, apresenta um público-alvo mais específico.
O Cadastro Único (CadÚnico) é um sistema de cadastramento das famílias de baixa renda - aquelas que têm renda inferior a ½ salário-mínimo per capita ou renda total inferior a 3 salários mínimos. Este sistema ajudou a selecionar os parâmetros e operacionalização para o Bolsa Família, contou com uma articulação do governo federal com os estados e principalmente com as prefeituras para a realização do cadastramento e coleta de informações. Já para a parte de operacionalização do pagamento ficou ao encargo da Caixa Econômica Federal.
O Bolsa Família possibilitou que muitas pessoas de seu público-alvo, que não tinham acesso ao sistema financeiro o adentrassem, já que a operacionalização da política inclui um cartão e contas eram abertas automaticamente em nome dos responsáveis pela família, sem necessidade de solicitação ou comparecimento a uma agência. Além disso, não há nenhum tipo de exigência de destinação específica do benefício recebido, então a pessoa que o recebe pode gastar o dinheiro da maneira que quiser.
Esta política de renda já foi fruto de muitos debates, polêmicas e até visões equivocadas. Porém, seus resultados causam impactos positivos sobre a redução da desigualdade e da pobreza. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que o gasto com o Bolsa Família representa 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro e levou a uma redução de 15% nos índices de pobreza, alcançando a parcela mais vulnerável da população, além disso, recomendou o aumento deste benefício.
Auxílio Emergencial
Uma das medidas adotada pelo governo brasileiro no período de pandemia foi o Auxílio Emergencial instituído pela lei n° 13.982, 2 de abril de 2020. A lei estabelece que medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. O objetivo do auxílio emergencial visa garantir que trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados tivessem uma renda, visto a necessidade do isolamento social e a impossibilidade de exercerem suas atividades.
O Auxílio Emergencial, como o próprio nome sinaliza, é emergencial, pensado para atender ao público-alvo dentro de uma eventualidade, que é a pandemia de covid-19, é uma substituição de parte da renda que foi perdida por essas pessoas. Não é possível manter o auxílio emergencial como uma política de renda permanente, é economicamente insustentável, visto que este foi o maior programa de política de renda que já aconteceu no Brasil, tanto em relação ao orçamento destinado, quanto ao número de pessoas que tiveram acesso ao benefício.
Até novembro de 2020, mais de 41% dos domicílios brasileiros receberam o auxílio emergencial, segundo o IBGE, e o valor demandado para a realização desta política foi mais de R$ 280 bilhões, segundo o Ministério da Cidadania, mas estima-se que será gasto R$ 321,8 bilhões até o fim do Auxílio Emergencial. Um programa grande se comparado com as outras políticas de renda realizadas no Brasil. Foi muito importante para o cenário e impactou de forma positiva a economia brasileira e certamente socorreu a parte da população que teve acesso ao programa. Como exemplo da dimensão do Auxílio Emergencial, somente em maio de 2020, foram gastos 46,9 bilhões, enquanto que os gastos com o Bolsa Família foram de 2,1 bilhões, dados de acordo com o Ministério da Cidadania.
No entanto, não se pode deixar de pontuar que houve algumas falhas no funcionamento prático, que poderia ser evitado com um cuidado maior durante o planejamento desta política. Por exemplo, a dificuldade que o público-alvo enfrentou na realização dos procedimentos necessários para o recebimento do auxílio, não deixando outra alternativa a não ser aglomerações indesejadas e longas filas na frente de agências bancárias da Caixa Econômica Federal por todo o país. Além disso, questões técnicas tornaram-se entraves para a acessibilidade ao benefício para uma parte da população. Por exemplo, o cadastramento por meio de aplicativo em um país em que muitas pessoas não tem acesso a celulares.
Diferente da Renda Básica e o Bolsa Família, o Auxílio Emergencial não se trata de uma transferência de renda, pois exige que, em contrapartida, o beneficiado tenha perdido totalmente ou parcialmente a renda e ao auxílio caberia essa substituição parcial. Um ponto em comum entre as políticas é que não especifica e nem obriga ao beneficiado gastar o dinheiro com o consumo ou atividade determinada. Portanto, a pessoa fica livre para gastar como bem entender o benefício.
Quando se trata de crescimento econômico, pode-se dizer que o auxílio emergencial teve um papel importante para evitar uma queda no Produto Interno Bruto (PIB), por conta do efeito multiplicador que gera na economia. Esse efeito acontece porque pessoas que receberam o benefício irão consumir, portanto, irão movimentar a economia.
Não foi apenas o Brasil que realizou políticas emergenciais de combate a pandemia, para garantia da renda da população. Países como Estados Unidos aprovaram pacotes de auxílio de renda emergencial bem robustos, além de países como Argentina, Chile, entre outros.
Para sintetizar as diferenças entre as três políticas de renda que exploramos, analise a tabela comparativa abaixo:
Tabela 1 – Características da Renda Básica, Auxílio Emergencial e Programa Bolsa Família
Fonte: Elaboração própria
Após entendermos um pouco mais sobre as políticas de renda e a necessidade de gastos do governo para que estas políticas sejam financiadas, não é incomum a pergunta: quem paga essa conta? No próximo fascículos discutiremos possíveis respostas para essa questão.
[1] https://exame.com/economia/brasil-e-nono-pais-mais-desigual-do-mundo-diz-ibge/




Publicado em 30 de setembro de 2021.



Equipe do projeto Economia no CIEP.
Referências
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